Os que me conhecem sabem que sou uma espécie de Batman culinário. Não, não sou uma multimilionária arrogante durante o dia e uma justiceira quando o sol se põe mas sou jornalista no SAPO a maior parte do tempo e doceira no tempo que o tempo me permite. Isto para fazer o disclaimer que sou da casa e que o convite feito pelo SAPO este Natal não chega por acaso.
Ora, para celebrar a chegada do Natal, o SAPO desafiou um conjunto de bloggers a fazer receitas fáceis para a consoada - daquelas que não dão muitas dores de cabeça e nos deixam saborear um copo de vinho ainda acordados e não com a cabeça a pender para a mesa de todo o trabalho que o Natal nos deu.
Tentei encontrar coisas realmente fáceis e que, na verdade, não são assim tão natalícias mas servem o propósito.
A primeira receita foi publicada ontem. Dei-lhe o nome de filhoses aldrabadas só porque tenho a mania que sou engraçadinha. E, sim, tenho a perfeita noção de que não tem nada que ver com os tradicionais fritos de Natal mas o meu palato e o meu nariz associam o aroma (a açúcar e canela) e a textura (crocante por fora, macia por dentro) aos doces que se comem por esta altura.
Se tentássemos listar todos os fritos de Natal e todos nomes por que cada um é conhecido em cada zona do país ficávamos aqui até ao natal de 2015.
Mas, peguemos, a título de exemplo (e porque este post é sobre elas), nas filhoses. Eu chamo-as por este nome e escrevo o nome com S mas há quem use filhó como singular e filhós como plural (parece que esta é forma mais convencionada pelos dicionários) ou mesmo quem escreva filhozes com Z. As variações têm as origens mais diversas: o local de onde se vem, o local onde se vive, a nomenclatura que se tornou tradição na família, por aí fora.
Para mim, no Natal não há certos e errados, há hábitos que vêm da infância e que se tornaram tradições. E nas tradições não se mexe.
As filhoses nunca foram doce de Natal habitual na minha família. Crescemos a comer os coscorões, os sonhos e os rolos da minha avó mas nunca fizemos filhoses. Mas as filhoses sempre foram motivo de encontro anual para a família da minha cara metade. Todos os anos, pai, filhos, cônjuges dos filhos e neto juntam-se para as fazer no domingo anterior à véspera de Natal. O encontro celebra o espírito de Natal mas tem um objetivo mais pragmático: é que fazer as filhoses dá trabalho que se farta e quanto mais braços houver menos custa a chegar ao fim da enorme bola de massa.
O trabalho dura quase todo o dia: faz-se a massa de manhã, depois deixa-se que levede no quentinho de um cobertor, faz-se pausa para almoçar e frita-se tudo à tarde.
No fim, divide-se o mal pelas aldeias (que é como quem diz, dividem-se os fritos pelos participantes) mas não sem antes haver a primeira prova, geralmente acompanhada de um chá com as filhoses ainda mornas.
A receita é da avó do meu marido e ainda é recuperada todos os anos numa folha de papel pautado, escrita com caligrafia à antiga e já salpicada por amostras das várias doses que se foram fazendo ao longo dos anos. É um daqueles papéis com histórias para contar.
Este domingo, foi dia de filhoses e, desta vez, as instruções ficam escritas no Quanto Mais Quente Melhor, que o papel antigo pode rasgar-se um dia destes e não queremos perder a receita.
Ingredientes:
1 kg de abóbora
1 saqueta de fermento de padeiro ou um pedaço de fermento fresco
1 c. sopa de azeite
1 c. sopa de manteiga ou margarina
Raspa de 1 limão
Sumo e raspa de 3 laranjas
4 ovos
1 c. sopa de canela
4 c. sopa de açúcar
+/- 2 Kg de farinha (e mais alguma para estender)
1 pitada de sal
1 c. sopa de aguardente ou vinho do Porto
Descasca-se a abóbora, corta-se aos cubos e pesa-se para que tenhamos 1Kg depois de descascada e cortada. Leva-se a cozer em água com um pouco de sal. Quando estiver cozida, coloca-se num passador e deixa-se a escorrer até ao dia seguinte.
Derrete-se a manteiga e junta-se o fermento. Desfaz-se a abóbora para uma tigela (pode ser com o passador ou com um liquidificador, como preferirem). À abóbora junta-se o azeite, a raspa de limão, a raspa e o sumo das laranjas, a canela, o açúcar, o sal, a aguardente ou o vinho do Porto e mexe-se tudo bem. A esta mistura juntam-se as gemas dos quatro ovos e o fermento com a margarina. Bate-se tudo bem.
À parte, batem-se as claras em castelo que se envolvem de seguida na mistura de abóbora. Quando estiver tudo bem batido e completamente homogéneo, é tempo de começar a adicionar a farinha.
Aqui não há uma medida certa. A quantidade de farinha vai depender da água que a abóbora tinha, da humidade do dia e de mais uma série de coisas que não vale a pena enumerar. Contem com mais ou menos 2 Kg de farinha mas estejam preparados para que seja menos ou mais.
Vão juntando farinha e mexendo bem até que a massa comece a despegar-se do fundo da tigela. Quando isso acontecer, transfiram a massa para uma mesa de trabalho e continuem a juntar farinha enquanto amassam. Vão perceber facilmente quando não precisam de colocar mais farinha. A massa deixa de estar pegajosa e começa a ficar elástica.
Esta é a altura em que fazer filhoses se torna saudável: exercitem os braços na massa durante uns 10/15 minutos. Amassem, puxando e dobrando a massa, atirando-a ao ar e batendo na mesa com força. É à vontade do freguês e até pode servir para libertar stress, o importante é que deem porrada com fartura na massa. Quando colocarem o dedo na bola da massa e o buraco que o vosso dedo fez voltar à posição inicial, está pronta.
Embrulhem a massa num pano e enrolem-na num cobertor quente. Em dias frios, podem pô-la num local quentinho, perto de um aquecedor, por exemplo.
Podem fazer uma pausa por agora. Esperem no mínimo, umas duas horas para que cresça mas podem deixá-la mais tempo a levedar, até 4/5 horas.
Quando for tempo para fritar, aqueçam o óleo e preparem um prato forrado com papel de cozinha e outro com açúcar e canela para as passar quando sairem do lume. Vão tirando pedaços de massa e estendendo numa superfície enfarinhada com o rolo de massa.
As filhoses tradicionais são estendidas uma a uma à mão até se obter uma forma redonda, um pouco mais grossa nas extremidades. Nós fazemos batota e estendemos pedaços grandes de massa que depois cortamos como se fossem coscorões. É mais rápido e não muda em nada o sabor.
Fritem-nas em óleo bem quente até estarem douradas. Deixem escorrer no papel por uns minutos, passem por açúcar e canela e devorem. No Ano Novo volta a fazer-se dieta.